FÉRIAS LONGE DE CASA

            Ainda não havia chegado em casa naquele dia, após uma manhã de aulas com dona Avany, minha primeira e austera professora às vezes enigmática, e já estava pensando em como dizer ao meu pai que gostaria de ir passar minhas férias no engenho Terra Vermelha  pertencente ao meu padrinho Sula Lapenda e madrinha Carminha, esta irmã de mamãe.
Era mesmo uma coisa complexa. Meu pai, um homem de caráter irretocável e maneiras suaves, às vezes imprimia respeito além do necessário, nos  deixava pouco à vontade, sem saber o que dizer ao encontrar aquele seu olhar penetrante, porém sereno.  Enquanto seguia para casa, ainda com meus 6 ou 7 anos, ia mirabolando um plano que certamente daria certo: pedir a padrinho Sula, que pedisse ao meu pai. Pronto, estava resolvido, seria dessa forma. Agora era só uma questão de tempo para que pudesse me encontrar com padrinho Sula e explicar a situação. Coisas mesmo de crianças, porém, bem concebidas do ponto de vista do engendramento.
O tempo passou e nada do encontro com o padrinho Sula. Ia terminar por não conseguir passar minhas férias com meus primos: Gilvan, Gilberto, Dorinha, Consuêlo, Gilvanete e Neide, àquela época, Verônica ainda não era nascida.
O sol já estava alto naquele dia de verão no vilarejo do Cedro. De repente, ouvi uma buzina de automóvel, coisa ainda rara por ali naqueles tempos (1957 ou mais). Pulei da cama ainda em pijamas e fui à janela. Era a baratinha de padrinho Sula – nome que dávamos ao seu carro que parecia mesmo uma baratinha, só que branca -. Não perdi tempo me acheguei logo ao carro e já fui dizendo:
-Padrinho Sula, peça a pai para ele deixar eu ir para o engenho com o senhor.
Ele me olhou com aqueles olhos grandes, próprio dos italianos e disse:
-Oi seu João – era como me chamava - me deixa descer do carro, e deu uma sonora gargalhada.
-Tá bem vou falar com Zé – apelido de meu pai - para ele deixar eu te levar.
Pronto, fui  pra onde estava minha mãe já pedindo pra ela colocar minhas roupas em uma maleta ou qualquer outra coisa e falando alto:
-Mãe vou pra casa de padrinho Sula com ele. Ele vai pedir a pai.
Mamãe já sabia de minhas intenções e ficou rindo, mas, foi aprontar minhas roupas, pois ela sabia que pai nunca negava um pedido de padrinho Sula. E assim foi.
Na chegada ao engenho, umas buzinadas e algumas pessoas já acorreram.
Ah, que delícia para mim, criança, chegar àquele engenho.  A casa grande era num alto, alpendrada de muros que tinham detalhes que não impediam a visão para a casa. Ao fundo, em frente, um grande açude onde existiam gansos e outra aves aquáticas.  Olhando para o açude, lado esquerdo, estavam o que sobrou do engenho propriamente dito: a casa de moendas, a casa de cozimento do caldo para fazer o melaço e o açúcar bruto ou preto, como era chamado o demerara sem beneficiamento; o salão para escorrimento do mel de furo, assim chamado por que escorria dos furos em baixo das formas que armazenariam o mel já ao ponto de cristalizar, durante vários dias e a casa do alambique, já desativado.
O mel de furo era um  melaço destinado, naquele tempo, ao consumo do gado e outros animais, como complemento  alimentar juntamente com outras rações.
À tarde daquele mesmo dia chegamos ao engenho, só tive tempo  para arrumar as coisas e depois do jantar tratar de dormir para começar o dia seguinte com muita disposição para usufruir das coisas que estariam para acontecer.
Passarada a gorjear. Sons de canários da terra, galos de campinas, patativas e outros tantos tipos de pássaros que por ali habitavam pois não era permitida a caça dessas aves. O chiado mais parecido a um lamento do carro-de-bois e o relinchar de cavalos me fizeram saltar da cama pois significava que já havia movimento em um dos currais que ficava ao lado da casa grande. Confesso que não lembro muito os detalhes do lugar por já se vão quase 60 anos. Corri para escovar os dentes e lavar o rosto, como era comum à época e, copo na mão dado por madrinha Carminha, já fui tomar o leite ao pé da vaca como se dizia. No curral já estavam meus primos Gilvan e Gilberto, este, já começava a ser meu parceiro, o que só aconteceria mesmo, quando fôssemos  todos morar na cidade de Limoeiro. Tomamos o leite, quentinho, saído do peito da vaca, era mesmo uma delícia. Fomos todos para  o café da manhã. Mesa longa todo mundo ali sentado e sempre o maestro Sula, com seu ar sempre bonacheirão, comandava as ações, seu João coma isso, seu João coma aquilo e todo mundo caía na risada pois eu ficava encabulado. Meu pensamento estava em andar à cavalo com meu primo e ver os animais da, hoje fazenda, que por ali caminhavam.
Íamos às quase ruínas do engenho e ali brincávamos até cansar, sempre com alguém a nos acompanhar.
O melhor estava para acontecer, o debulhar do feijão de corda, verdinho, à noite. Sentávamos ao redor da mesa grande e cada um procurava debulhar a sua vagem. As meninas  participavam de tudo juntamente comigo e meus primos homens. Muitas histórias eram contadas e sempre padrinho Sula a comandar as ações. Às vezes sons estranhos  eram escutados na sala e a risadagem era geral, cada um apontando o outro e nunca se sabia ao certo o que era ou quem era que estava a produzir esses sons. Então, após cansativo dia de vários dias já acontecidos por ali, o sono finalmente aparecia e nos enviava a reviver em sonhos de sono tranquilo, o que vivenciamos ao longo desse período movimentado.
Finalmente, chegou a hora da volta, muito choro e o pedido de venha novamente e outras coisas carinhosas, e lá vamos nós na baratinha de volta para casa. Outra vez muitas despedidas e agradecimentos, principalmente a padrinho Sula,  e lá estava eu, de novo, em minha casa do Cedro junto com meus pais e minhas irmãs que já provocavam saudades.
Não podia estar mais satisfeito e sorridente. Realizara mais um dos meus projetos de criança, mas, eram meus projetos e gostava deles com eram e de como os realizava.
Hoje, as lembranças me fazem, novamente, esvoaçar nas asas dos sonhos, não mais sonhos de projetos, mas, de reviver épocas que não voltam mais, porém serviram para formatar a minha personalidade e a minha forma de viver.
Tempos bons, tempos de férias longe de casa.

João Coutinho de Amorim

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