O HOMEM QUE MANCAVA

Era um dia de muita chuva, chuva que se enroscava ao vento formando cones como névoa em manhãs de muito frio. Na rua calçada com pedra cortada, uma carroça gemia sob o peso dos volumes e do carroceiro a chicotear o animal. Todos os dias em que eu por ali passava em caminhadas de uma ou até duas horas, sempre às 6:20h, mais ou menos, encontrava um homem vindo na direção contrária e que tinha como principal detalhe  o coxear da perna esquerda, mas que evoluía bem no caminhar. Era um homem de estatura mediana, grandes sobrancelhas e olhos penetrantes, um leve sorriso e mãos, como se notava, que estavam calejadas pelo trabalho. Cumprimentava a todos que por ele passava.
Um dia, quando já estava voltando da caminhada, vi que aquele senhor de ombros largos e que mancava da perna esquerda, estava sentado à beira da calçada com a cabeça um pouco pendida para a frente, curiosamente, aproximei-me dele para verificar o que ocorria.

-Bom dia senhor! Posso ajuda em alguma coisa?
 
Não obtive resposta. Mais curioso ainda, sentei-me ao seu lado e vi que estava ofegante. Tomei-lhe os braços, muito frios, e tentei soerguê-lo. Em vão. Novamente me dirigi a ele.

-Senhor, está sentindo alguma dor?

 Então, surpreendentemente, ele me olhou e disse:

-Já senti dores piores que esta meu amigo. Dores que nunca mais gostaria de senti-las.

Então perguntei:

-Gostaria de ir a algum posto médico ou mesmo um hospital?
-Não meu filho, essa pequena dor vai passar logo. Sempre a tenho, é como uma velha companheira, que quando penso que estou só, ela aparece me alertando de todos os males que existem por aí hoje.

            Continuei minha caminhada e sempre a olhar para trás ainda divisando, na bruma, a silhueta daquele homem de olhar firme e de voz de tom triste e melancólico. Deixou transparecer que tinha mágoas profundas causadas, sabe-se lá por quem, que doíam mais em sua alma do que os males que sua perna esquerda, doentia, pudesse impingir-lhe ao corpo.
            Tomei minha ducha, verifiquei a correspondência eletrônica e pensei comigo mesmo: vou descobrir o que faz aquele homem sofrer mais interiormente do que fisicamente, com problemas tão graves de saúde.
            Na manhã seguinte, tomei um copo d’água, plantei dois tênis nos pés e empreendi a caminhada diária, de três quilômetros, mais ou menos. Confesso que estava ansioso para encontrar aquele senhor espadaúdo e de olhar que parecia nos interrogar. Já estava ficando inquieto, pois à medida que o tempo corria, as pessoas passavam e eu não encontrava o homem que coxeava.
            Ali próximo tinha uma guarita em uma fábrica, de onde um vigilante controlava as entradas dos operários. Animei-me e fui até ele. Perguntei:

-Bom dia moço, sempre está aqui todos os dias a esta hora?

E ele me respondeu:

-Sim, senhor, já faz uns cinco anos que todos os dias chego às seis da manhã e largo às catorze horas. O senhor deseja alguma coisa.
-Não, disse eu, apenas gostaria de saber se tem visto passar um homem já de certa idade e que manca da perna esquerda.
-Vejo, sim senhor. Só não passou até agora, coisa estranha, pois sempre fala comigo e brinca perguntando se passei a noite aqui.
-Obrigado amigo, já estou satisfeito. Tenha um bom dia de trabalho.

            Matutando sobre a ausência daquele personagem no passeio, deparei-me com um rapaz que parecia procurar alguma coisa próxima ao meio fio. Engraçado, era no local onde no dia anterior o velho estava sentado. Aproximei-me e perguntei:
-Perdeu alguma coisa jovem?
-Não senhor, respondeu ele, apenas procuro a identidade de meu avô que deve ter caído por aqui ontem quando foi socorrido para o hospital.
            Perguntei:
           
-Onde mora seu avô?
-Na próxima rua de esquina, nº 90.

            Agradeci e fui embora com o propósito de ir até àquela casa que poderia ser do cidadão que mancava. Assim fiz, antes de ir ao trabalho, dirigi-me à rua indicada pelo jovem e parei em frente ao número 90. Confesso que estava com a curiosidade bastante aguçada. Toquei a campainha e apareceu uma senhora de cabelos grisalhos, aparentando uns sessenta anos que perguntou?

-Em que posso ajudá-lo.
-Gostaria de saber se aqui reside um senhor que tem uma deficiência na perna esquerda, pois gostaria de lhe falar, disse eu.
-Sim é aqui sua residência. O senhor terá que entrar, pois ele está deitado.

            Entrei na residência simples, mas, bem asseada, e fui até ao quarto do homem.
Ali estava, mesmo semblante, olhar um pouco evasivo mas, encarou-me e disse:

-Estou lembrado do senhor. Ofereceu-me ajuda outro dia, não?
-Certamente que fui eu, retruquei amistosamente, e perguntei: como está passando?
-Estou na reta final de uma longa jornada, amigo. Mas, como lhe disse, estas dores do corpo são pequenas em relação à que já senti aqui dentro do peito.

            Sem saber muito o que falar, perguntei:

-Gostaria de falar sobre isso?
-Porque não, falou o homem, que continuou:
-Certa vez, há alguns anos atrás, estava vindo do trabalho e quando cheguei em casa escutei um reboliço, muita correria e indaguei: o que está ocorrendo? E me disseram: Antonio, seu filho está entalado em um galho da mangueira, quase no topo. Olhei e vi que a situação era meio complicada. Tirei os sapatos e a camisa e comecei a subir na mangueira. Quando estava quase tocando seu corpo, começou a chover e a mangueira ficou escorregadia. Peguei o menino e quando estava a poucos metros do chão, escorreguei e caímos. Caí por cima de meu filho, ainda pequeno e ele estava desmaiado. Coloquei-o nos braços, arrastando a perna esquerda que provavelmente estava quebrada e gritei por socorro.
            Depois disto fiquei algum tempo desacordado pela pancada na cabeça e acordei no leito de um hospital com a perna pendurada e com alguns parafusos nos ossos. Foi quando soube a realidade: meu filho morrera com o pescoço quebrado e eu havia quebrado o fêmur e tinha tido uma concussão cerebral.

            Nesse momento, o homem parou e seus olhos se encheram de lágrimas, mas, não demonstrava tristeza, apenas chorava, perguntei então:

-Noto que o senhor chora, mas não está triste.
-É moço, realmente não sinto tristeza, apenas saudade de meu filho que morreu sob meu corpo que foi um dos mentores da sua concepção.

            Houve uma pequena pausa. Olhava aquele homem, que apesar de todo sofrimento que se lhe apresentava, mostrava uma serenidade que muito me tocou. Foi então que ele novamente falou:

-Sabe, moço, porque não sou triste? Os médicos fizerem exames de raio x na cabeça de meu filho e constataram um tumor cerebral já muito avançado, seria uma questão de tempo para ele começar a ter muitos problemas e, quem sabe, vir a morrer.
-Quem sabe, também, eu não tenha sido o instrumento de Deus para evitar seu sofrimento futuro. A dor que senti no momento que recebi a notícia de sua morte, foi tão grande que pensei que não poderia suportar. Mas, Deus escreve certo por linhas tortas, e hoje, apesar da dor da saudade e das dores físicas na perna esquerda, estou em paz, quem sabe estes desmaios não sejam um sinal de chamamento para ir ao encontro de meu filho.
            Nesse momento, suspirou e silenciou. Tomei sua mão, um pouco fria, apertei-a calorosamente e me despedi.
            Ao chegar em casa, parecia tudo estar renovado, aquele homem me ensinara que a vida não é trabalhar e trabalhar e executar as rotinas do dia-a-dia, mas é, também, procurar ver nos grandes e pequenos acontecimentos de nossas vidas o que Deus quer de nós. Foi a lição que aprendi do homem que mancava.
(Texto de ficção)

João Coutinho de Amorim

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