Revivendo

REVIVENDO

Era um lugarejo quieto com apenas duas ruas que formavam um tê. Uma começando no grupo escolar, passando pela ponte e indo se encontrar com a rua grande ou rua principal. À época, pelos idos dos anos de 1950, ainda não havia o chamado calçamento nessas ruas, eram no massapé cheio de erosões causadas pelas chuvas bem mais abundantes, naquele lapso de tempo. Certamente deve ter havido uma grande transformação ao longo de todo este período.
Alguns o chamavam de Cedro outros de Urucuba, até que a Prefeitura de Limoeiro colocou-lhe, definitivamente, o nome de Urucuba.
Uma vila de pessoas trabalhadoras na agricultura, afora seu Heleno que moldava o barro fazendo aguedás, bacias, panelas e outros artefatos de cozinha. Seu José Mariano e Zé Paz, que tinham uma mercearia, e este ajudado pelo seu filho Neco, dominava o comércio local. Eles vendiam de tudo: querosene, álcool, pão, vassouras, charque, farinha, feijão, arroz, comprimidos para dor, cascas de árvores para chás, candeeiros de todos os tipos, pilhas, lanternas, enfim, a manutenção de uma família estava garantida se o comprador tivesse crédito na casa ou dinheiro em espécie.
A ordem era mantida pelo Cabo Bezerra, muito querido de todos e que, nas comemorações do dia da independência, organizava um desfile cívico, com muito garbo, tendo à frente uma pequena banda marcial da escola estadual. Esta escola tinha como única professora, dona Avany Moreira Franco, minha primeira professora, coisa que nunca se esquece, esposa de Belo, bom tocador de cavaquinho, que animava o pastoril infantil do qual minha irmã Zenilda fazia parte. Dona Avany era alta, de queixo proeminente, olhar penetrante e muito austera, mas que, sabíamos, amava os seus alunos como se seus filhos fossem. Porém, se necessário, o castigo era certo, até mesmo fazer ajoelhar em grãos de milho. Mas, todos aprendíamos e a respeitávamos. Era a nossa mestra e também de Marcílio, que era parte integrante da molecada daquele lugar quase ermo da civilização, naquele momento.
Tínhamos, na vila, uma pequena farmácia cujo dono se chamava João Rosa. Era, também, um caçador e como todo bom caçador, tinha um cachorro perdigueiro e muitas histórias para contar, sua paixão depois da família.
Ali todos se conheciam. Tinha a família Labanca, de Chico Labanca; a família Albanês, de Pepê; a família Mota Silveira do nosso tio Dudu; a família de José Gueba, meu pai, como assim era chamado, que era também o escrivão do lugar; a família de Estelita e Rita Machado que, juntamente com Deca, tomavam conta da única capela católica e formavam uma espécie de coral daquela igrejinha; a família do seu João Secundo, que morava na entrada da ponte e que também era comerciante e tantas outras que não mais me recordo. Essas pessoas podiam ter suas divergências, mas, viviam em harmonia e se houvesse necessidade se ajudavam mutuamente, sem pestanejar e sem medir esforços.
As diversões eram muito poucas ou quase nenhuma. Poder-se-ia dizer que, não fossem os estragos que provocava, a maior diversão era ir para a ponte quando havia enchentes no rio Tracunhaém, no qual também tomei muitos banhos, olhar os moleques pularem naquelas águas barrentas, cheias de redemoinhos, nelas desaparecendo e reaparecendo mais à frente e que cortavam com braçadas vigorosas. E aos finais de semanas, também podíamos alugar uma bicicleta para dar algumas voltinhas, na casa de aluguel do Biuzinho.
Jogar bolas de gude, empinar papagaios, andar a cavalo, brincar de pega; fazer cavalinhos de paus ou cambão de milho, simular caçadas com baleadeiras, eram as principais formas de brincar das crianças da época. Todos, de alguma maneira, engendravam seus brinquedos.
Nas noites de verão, um luar muito fino e delicado, derramava sobre aquelas paragens sua luz suave e chamativa para sentar às calçadas ou nos terreiros e ir, madrugada adentro, conversando ou jogando sueca e dominó, com suas cartas e pedras.
As festas juninas, mais comemoradas por todos eram o São João e o São Pedro, quando corriam soltos, muitos fogos de artifícios, tiros de riúna ou bacamarte, que meu pai, inclusive, tinha um, comidas de milho e milho assado nas fogueiras que iluminavam as casas e os terreiros cheios de pessoas do lugar. Era muito bom.
Meu pai fazia seus balões e rojões que, quando espoucavam, chegavam a doer os ouvidos. Os moradores do sítio Cafezal – onde nasci -, Mané Felipe, Antonio Capiba, Zé Félix, João Pedro, dona Tonha e outros, achegavam-se, com a família, para as calçadas alpendradas da casa grande e rompiam a noite soltando balões, rojões, dando tiros de riúna, muita conversa e muita risadagem, tudo ao redor de uma grande e fumarenta fogueira. Era, realmente, uma noite de São João ao estilo bem nordestino. Como diria o velho rei do baião, Luiz Gonzaga: “ A fogueira tá queimando, em homenagem a São João “...
Mas, ainda havia uma outra festa que se igualava em festejos e muita animação às festas juninas, era a festa dos noiteiros do mês de maio. Todas as noites, durante os trinta e um dias do mês maio, uma família assumia a organização do terço a Maria. O terço, geralmente, era conduzido pelas filhas de Maria, apostolado da oração, Estelita Machado, Rita Machado, a esposa de seu Heleno, suas filhas, Cremilda, que a chamávamos de Mida, Abigail, dona Cezarina, minha mãe, e outras devotas do lugar. Após a reza na capelinha, todos iam para a rua apreciar a queima de fogos de artifício, a subida dos balões e ali muita conversa e prosas rolavam boa parte da noite, em geral, discutindo quem tinha feito a melhor noitada de maio, até aquele momento.
Essa capelinha tinha uma celebração mensal da eucaristia, que, à época, era dirigida pelo monsenhor Gentil, e era muito concorrida. As pessoas dos povoados próximos aproveitavam aquela celebração para virem prestar seus louvores a Deus. O monsenhor Gentil, que muito anos depois, foi sagrado Bispo de uma diocese que não mais me recordo o nome, exortava os fiéis a acreditar mais nas coisas de Deus. Nessas missas, cantavam-se benditos, como bendito e louvada seja, do céu a divina luz, etc, e eu era um dos coroinhas o que terminou culminando com minha ida ao seminário dos padres seculares em Nazaré da Mata e posteriormente em Recife, o que não prosperou em virtude da exigência do celibato.
E, finalmente, para fechar o ciclo de festas, a festa de São Sebastião, festa do padroeiro do lugar, que ia do dia 20 a 3l de janeiro de todos os anos. E, aí, a molecada ficava à solta: canoas, carrosséis, roda gigante, onda marinha, canoas para balanços, a mulher que virava tigresa; algodão doce; roletas de jogos de azar e tantos outras coisas que, de alguma forma, serviam de divertimentos para todos os habitantes daquela aldeola. Porém, no último dia da festa, aí sim, as coisas se transformavam. Aquele lugarejo calmo, após a procissão de São Sebastião e Nossa Senhora, em andores bem ornamentados e iluminados, dava lugar à uma invasão de pessoas vindas da cidade de Limoeiro, proporcionando um fervilhar de cabeças que se moviam de um lado para o outro, como se fora um ritual combinado. Era bonito de ver. A retreta de uma banda de música vinda de Limoeiro animava, ainda mais, aquele turbilhão de pessoas, no seu indo e vindo sistemático, durante toda à noite, me faz refletir: a época da pureza ou a época da ingenuidade? Talvez se confundam na sua essência, todavia, era, sem dúvidas, um momento de paz e harmonia entre os homens e mulheres da época, apesar de todo atraso científico e tecnológico que se enfrentava.
Passados estes dias de festividades, novamente a inércia retomava o seu lugar, com as pessoas, ali moradoras, sentando às calçadas e comentando, aqui e ali, sobre os acontecimentos da vida de seus próprios vizinhos e, por que não, de seus momentos felizes.
Aos sábados, normalmente, um marchante abatia um boi, que recortava para a venda, no peso, proporcionando um aglomerado de pessoas ao redor da tarimba de madeira e de outros feirantes, se assim podíamos chamar, formando, então, um grupo para “bater papo”.
Tudo isto, de forma simplificada, era a vila do Cedro, ou Urucuba, lugar onde nasci e passei toda a minha infância. Um lugar calmo, sem poluição, sem atrativos modernos, é verdade, porém de uma solidariedade cativante entre seus moradores, coisa que hoje ocorre com pouca freqüência. Ali, dei meus primeiros passos para a educação e para a vida, junto aos meus pais, irmãs e amigos de infância. Porque não admitir, sinto saudades de tudo aquilo que se passou nos meus primeiros anos de vida naquele pequeno lugarejo, que foi o berço de meu aprendizado para a juventude e porque não dizer, para a maturidade. Hoje, estou gozando um pouco de todo aquele passado que se faz presente em minhas ações de vida, compartilhadas por minha família e meus novos amigos. Estas, são minhas relembranças do que foi a minha infância em Urucuba.

João Coutinho de Amorim

(jun/2008)

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Imagem do escritor e pintor Marco Antonio Cruz, obra intitulada "Bora que vem Chuva".

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