UMA VISITA INESPERADA

Era a primeira terça-feira do mês de outubro de 1981, um dia como outro qualquer naquela cidadezinha de pouco mais de 20.000 habitantes, de nome Apodi, encrustada no sertão do Rio Grande do Norte, a cerca de 80 km ao lado esquerdo de Mossoró, a maior cidade daquela área e a segunda maior do Estado. Porém, naquela manhã, iria acompanhar o agrônomo encarregado de fiscalizar os empréstimos efetuados pela Agência do Banco do Nordeste do Brasil, daquela cidade, na visita a uma das pequenas propriedades rurais. Depois de verificar que tudo ficaria normal na agência, empreendemos viagem para o interior do município.
A cidade tinha lá seus atrativos. Um grande açude na encosta de um morro, em cujo alto havia um restaurante, que servia de balneário e de fonte de pesca para os habitantes do município, quiçá de outras cidades vizinhas. Como em todo lugarejo do sertão, cidade ou vila, a hospitalidade era digna de se presenciar. Um bom dia aqui, um como vai ali, e todos se esforçam para serem gentis, apesar do ar de seriedade que está impregnado em seus rostos.

As estradas, como todas dos municípios do interior do nordeste, são, até certo ponto, apenas carroçáveis, pois as prefeituras dessas regiões nunca fazem os reparos necessários nos estragos provocados pela erosão das águas pluviais. Já era verão alto. As terras ao lado da estrada já apresentavam uma vegetação marcada pelo sol causticante, típico dos sertões nordestinos. Uma poeira fina de cor amarelada formava uma nuvem de pó ao passar da camionete que saltitava igual aos cabritos soltos na caatinga, fugindo de algum cachorro. Viam-se muitas cabras e bodes soltos nas pastagens já ressequidas, pois era comum no sertão criar animais soltos nas campinas, como eram chamadas as caatingas sem cercas de arame farpado. Hoje, essa prática já está praticamente abolida, até mesmo pelos problemas de roubos e a falta de consentimento dos donos das terras.
Depois de quase uma hora e meia, chegamos à região das pequenas propriedades, onde iríamos averiguar como estavam se comportando os investimentos financiados. É bom se dizer que o BNB, como é chamado o Banco do Nordeste, tem procurado cumprir o seu papel. Entretanto, a falta de uma política agrária, dos governos federal e estaduais, e até mesmo dos municípios, tem frustrado os esforços do BNB e do próprio Banco do Brasil, na tentativa de aportar recursos para agropecuária nordestina e investimentos de infraestrutura rural visando diminuir as diferenças regionais.
Paramos em uma bifurcação da estrada e perguntamos a um trabalhador de eito, como são chamados os trabalhadores de aluguel,  se ele sabia onde era  o sítio de seu Pedro de Mocinha, Mocinha a mulher de seu Pedro. No nordeste, em especial no sertão, algumas pessoas são conhecidas como sendo ligadas a outra. Biu de Joquinha, Joquinha o pai, é mais ou menos como funciona o relacionamento nominal na área. O trabalhador então disse:
-Fica naquela direção, mais ou menos uma leguinha, ou seja, uns quatro ou cinco quilômetros – uma légua são seis quilômetros.
Agradecemos e tocamos em frente. Começaram então a aparecer as primeiras cercas de faxina, ou de varas entrelaçadas, como são feitas a maioria das cercas da região sertaneja. Nesta época do ano, quase nada se tem a fazer no sertão, a não ser esperar as primeiras trovoadas. Paramos o veículo no terreiro, já por volta das 10:00h da manhã, e apareceu aquele homem, torso nu, pele quase negra, mas com um tom de bronzeado por conta do sol abrasador, com um sorriso desdentado pela falta dos incisivos, e balbuciou:
-Bom dia, que querem vossuncês?
-É aqui o sítio de Pedro de Mocinha?
-Sou eu mesmo, patrão, posso ajudar em alguma coisa?
-Bom dia, disse o agrônomo, nós somos do BNB e viemos ver como vão as “criações”- cabras -, que o banco financiou para o senhor.
-Ah! Pois bem, seu moço, vamos ter que dar uma voltinha pois as cabras estão soltas por aí. Tem algum problema?
Respondemos que não e aguardamos seu Pedro colocar uma camiseta já rota pelo tempo de uso, um chapelão de palha, um  pequeno pedaço de madeira em forma de cacete pendia de sua mão.
-Vamos –  chamou ele -, a bebida é logo ali.
E lá saímos, sol já bem alto, por um caminho estreito cujas  ramagens ao lado já estavam ressecadas e chegamos à bebida. Bebida é a denominação um pequeno barreiro ou açude, naquelas paragens. A água do barreiro já estava pelo meio do paredão,  ou um pouco menos, de cor leitosa, sem nenhuma transparência pois o terreno tinha um barro, também, de cor esbranquiçada.         Ao redor do barreiro, algumas cabras já se aproximavam para beber, e então seu Pedro nos disse:
-Pronto moços, essas são criações do Banco, e abriu um sorriso que, novamente, só deixaram transparecer  dois caninos e a gengiva.
Eram animais, apesar de quase nada ter para comer, de certa maneira, bem nutridos. Pelo limpo, brilhoso e musculatura rija. Talvez fossem o orgulho daquele homem simples, que tratava os animais como se fossem da família, com direito a nomes e tudo o mais.
Vimos o restante da criação de caprinos e nos demos por satisfeitos e empreendemos retorno para a casa de seu Pedro. Não sei bem se podemos chamar aquele amontoado de madeira disforme, com cobertura de sapé, com telhas velhas e pedaços de zinco tapando os buracos, de casa de residência.
Ao chegarmos ao terreiro, seu Pedro logo gritou:
-Mocinha, nós tem visita, vem cá mulé.
Apareceu dona Mocinha, uns quarenta e cinco anos, enxugando as mãos que deveriam estar manipulando alguma comida, também com sorriso desdentado e tez queimada pelo sol disse:
-Bom dia pessoal! Pedro nem falou que ôceis vinham pra cá.
-Oh! Mulher! Foi uma visita ligeira – ou seja, uma visita inesperada.
-Mas, vamos entrar pra dentro, os senhores devem estar com muita sede, também com esse solão, só quem agüenta é nós.
Entramos naquilo, que para aquele homem que só conhecia sacrifícios, era uma casa de morada. Piso no próprio chão do terreno;  as cadeiras eram dois pequenos bancos feitos com varas entrelaçadas, como assento, e apoiados em estacas em forquilhas;  a mesa era formada com alguns pedaços de tábuas serradas, também assentadas em cima de estacas fincadas no piso da casa;  alguns retratos já desbotados pendiam da parede e entre eles a figura de Frei Damião, uma espécie de protetor daquela gente sofrida pela fome e também  pela sede.
Seu Pedro nos chamou para conhecer o restante da casa. Um quarto cuja cama, já antiga, servia para leito do casal; outro quarto, para os dois meninos, esses com camas feitas de varas com colchões já desgastados; na cozinha, um fogão à lenha feito também de taipa – barro com madeira -, umas três panelas com muita fuligem  e um pequeno armário feito de tábuas serradas, onde guardavam comida, pratos e outras indumentárias da casa.      
Retornamos à sala e então seu Pedro falou:
-Bom gente, quero pedir desculpas pela casa mas, não pude ainda melhorar, tem tidos uns anos de pouco inverno e o dinheirinho só dá pra comprar o feijão, a farinha e um pouco de mistura – carne - e cuidar dos “bichinhos” -  sua criação de cabras.
-Mas, os senhores querem um pouco de água, com o sol brabo como tá, não? Ô Mocinha, traz dois canecos d’água aqui pros moços.
E lá vem dona Mocinha com os dois canecos que nos ofereceu. Quando tomei aquele caneco e olhei o seu conteúdo, quase me veio lágrimas aos olhos. Aquela água que vimos no barreiro onde os animais entravam para matar a sede, com um alto teor de barro que não permitia sua transparência, estava naquele caneco e nos era oferecida para beber, como se fora um  manjar do céu.
Não sei bem o que passou em minha mente naquele instante. Os sorrisos estampados naqueles rostos, indicavam sua generosidade e cordialidade em nos oferecer aquela porção barrenta que ali se chamava “água de beber”.
Ainda atônito, bebi aquela porção de líquido impregnado de um barro branco, pedindo  a Deus que me livrasse de possíveis conseqüências doentias. Seu Pedro notou nossa ligeira hesitação ao receber os canecos e comentou.
-É seus moços, essa é única água que temos aqui pra beber e cozinhar, e ainda agradecemos a Deus, porque quando seca o barreirinho, ficamos esperando um caminhão de água que é despejado na vila que fica meia légua daqui.
Nos despedimos, e empreendemos o retorno para a cidade de Apodi. Aquele trajeto, agora, pareceu-me uma eternidade.  Não conseguia entender como pessoas podiam sobreviverem a tamanhas dificuldades e ainda sorrirem e agradecerem a Deus por estarem vivendo naquela situação, sem perderem a esperança. Cheguei a sentir pena de mim mesmo, talvez por não poder fazer mais do que o que estava fazendo, ou talvez porque só estivesse fazendo o corriqueiro. O descaso das Instituições nacionais com o homem do campo, especialmente o sertanejo nordestino, chega a ser criminoso.
Como já disse certa vez:
(1)“...Desaparecem a certeza, o trabalho, o verde,  a vida,
Que se esvaem,  lentamente, na fome  que é dolorida.
Porém, jamais conseguem  tirar-lhe a confiança,
A fé que está implantada na humildade e esperança...” .
Foi uma visão que até hoje guardo como uma recordação de tragédia, pela pouca ou quase nenhuma assistência que tinham aquelas pessoas ou pela felicidade quase inusitada com que fomos recebidos naquela visita inesperada.

João Coutinho de Amorim

(1) Versos do poema "Terra, vida e esperança ", do autor.

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